terça-feira, 24 de maio de 2016

Decisões apopléticas, vidas banidas

Fico nervoso, apoplético. Quando se falou em bandido aqui, há que se concordar”, disse o desembargador Iraja Romeo Hilgenberg Prestes Mattar.
Em um movimento crescente – talvez desencadeado pelas jornadas de 2013 –, discursos mais sinceros, mais nervosos e mais apopléticos (I.R.H.) andam emergindo do anonimato privado, espalhando-se em todos os âmbitos, cada vez mais encorajados pela conjuntura política pela qual passamos.


No caso do Judiciário paranaense, foi veiculada pela Gazeta do Povo na semana passada a matéria TJ determina desocupação de área na Araupel.

Destacamos cinco trechos em que diferentes desembargadores que julgaram o caso deixaram transparecer a verdadeira fundamentação da decisão judicial:


[...]
Antes de decidir pela reintegração de posse da Araupel, os desembargadores que compõem o Órgão Especial do TJ discutiram a questão por quase duas horas. Eles demonstraram preocupação sobre a situação da região e teceram críticas aos integrantes do MST. “Viramos reféns desses movimentos, mas isso tem que acabar”, observou D’Artagnan Serpa Sá, que sugeriu a convocação de força nacional para cumprimento da ordem judicial.


Alguns magistrados ressaltaram que os juízes da região estão amedrontados e que é preciso cumprir a decisão para demonstrar fortalecimento do Judiciário e respeito às leis. “Minha maior preocupação é sobre o colega que está na comarca, é ele que está inseguro, é esse que precisa de uma decisão forte do tribunal. Se a gente fechar os olhos para essa situação, estamos apagando as luzes do Judiciário”, disse Wellington Coimbra de Moura.


Alguns magistrados também apontaram que o descumprimento da reintegração representa “crime de desobediência” pelo estado e que se trata de uma questão “política”. “Deixar para eles [estado] cumprirem a hora que quiserem é a mesma coisa que um cheque sem fundo”, afirmou Jorge de Oliveira Vargas.


É uma questão política, mantida e alimentada pelos políticos e isso ainda vai longe. Se judicializou, vamos resolver”, afirmou José Augusto Aniceto.


Já o desembargador Telmo Cherem votou contrariamente à maioria, afirmando que a situação se arrasta há muitos anos e que “ao estado que se chegou, não se resolve do dia para a noite”.


Clayton Camargo foi mais duro nas colocações. “Estamos falando de bandidos, não de assentados, e não interessa quantos são, porque de algum lugar eles saíram antes de chegar ali”, afirmou.
Duas reflexões sobre essas falas não puderam nos passar desapercebidas.


Quando citadas, as expressões empregadas pelos desembargadores, destacadas acima, serão seguidas das iniciais de seus locutores, como já fizemos no primeiro parágrafo.
1. A judicialização de conflitos de natureza social demanda a compreensão da formação da norma jurídica.

As normas jurídicas não nascem do acaso, mas sim de relações sociais concretas, que no estado capitalista são permeadas por estruturas de poder, mercado, ideologias e preconceitos. Na sociedade capitalista, a aplicação do direito se vincula a esses elementos. Isso fica mais evidente quando o objeto de litígio de uma ação judicial é a propriedade privada – elemento essencial do Estado capitalista.


Os titulares da propriedade privada, para poderem sê-lo, são antes sujeitos de direito, aos quais as normas jurídicas se dirigem.


No julgamento, a imagem do cheque sem fundo (J.O.V.) escancara o conteúdo patrimonial que serve de esqueleto às relações jurídicas. Se o Executivo não resolve a questão, incorre em crime de desobediência, sendo tão criminoso e imprestável quanto uma conta bancária vazia. 

E os movimentos populares, que sequer possuem conta bancária?


Na decisão objeto da notícia em destaque o Judiciário avoca para si a necessidade de efetivar o direito à propriedade de maneia célere e contundente, exigindo que o poder público faça o que for necessário para essa efetivação. Mesmo que isso demande altos custos e recursos pessoais (cerca de 40% do efetivo policial paranaense!).


Por outro lado, quando as reformas sociais necessárias (urbana, agrária, educacional etc.) são levadas à apreciação do Poder Judiciário, mesmo após sucessivas violações cometidas pelo poder público, a postura assumida costuma ser de total apatia e desvinculação com os casos.


Magicamente, aparecem o princípio da separação dos poderes e a arte do possível como limites ao ativismo judicial. Resta claro, contudo, que essas não são as verdadeiras barreiras às decisões judiciais. Em uma sociedade de sujeitos de direito, é o destinatário da decisão que aparece como critério.


São perguntas que nos sobram:
Quanto vale cada sujeito de direitos?
Para qual modelo de sociedade vale gastar o dinheiro e os recursos públicos?
Quanto valem as famílias de trabalhadores sem-terra perante um grande proprietário?
Quem é o verdadeiro sujeito de direitos na sociedade capitalista?
2. Bandido e banido são palavras de mesma origem etimológica: a qual delas estão se referindo os desembargadores?


Há um velho brocardo tupiniquim que diz:  a questão social é uma questão de polícia.  


A frase, de Washington Luís, finalmente se tornou obsoleta. Um dos desembargadores a atualiza: “se judicializou, vamos resolver” (J.A.A.).  Afinal, para quem ainda não percebeu, está encerrado o século do executivo: estamos agora século do judiciário, nos dizeres do Presidente do STF, Min. Ricardo Lewandowski.


Não é de se estranhar, portanto, que o Tribunal paranaense avoque a questão social para resolvê-la imediatamente, como se fossem autos empoeirados na secretaria do juízo. No caso, a judicialização do conflito agrário é como uma autorização plena ao Tribunal para arrumar a casa. À sua própria maneira, é claro.


A questão é: como fazê-lo?


No caso de um conflito entre proprietários e bandidos (C.C.; H.P.M.), tudo fica mais fácil.


Historicamente, bandido e banido são palavras irmãs. Da mesma origem também vem a palavra bando. No italiano, ainda hoje, bandire pode significar o mesmo que nosso verbo banir.


No português, apesar de a letra “d” ter sido deixada de lado, a semelhança entre banido e bandido permanece implícita com ambos os significados próximos à ideia de punição. A grande diferença entre elas é formal: o bandido ainda possui direitos, enquanto o banido já perdeu a capacidade de titularizá-los.


Sob essa conceituação, banidos não são apenas os exilados.


São também os despossuídos, os excluídos, os desterrados, os sem propriedade, os sem-terra... A única chance que esses banidos têm de titularizar direitos é dispor a própria força de trabalho no mercado, passando a apresentar algum valor de uso aos capitalistas (geração de riquezas).


O problema é que, aos olhos da nossa “sociedade de bem”, tudo o que os demais banidos possuem são sempre privilégios, e nunca direitos. O risco atual é que, com a alardeada crise econômica pela qual passamos, esses “privilégios” estão sendo vistos como gastos públicos gordurosos que, obviamente, devem ser cortados com urgência.


Tudo em nome dos direitos dos verdadeiros destinatários das normas jurídicas: os pobres reféns (D.S.S.) dos movimentos sociais.

É chegada a hora de o Judiciário, no limiar da adolescência de seu próprio século, declarar o banimento geral desse bando de despossuídos e privilegiados?


Por Ana Flávia Vilela e Guilherme Uchimura, colaboradores externos do LUTAS - Assessoria Jurídica Universitária Popular.