quarta-feira, 18 de novembro de 2015

NOTA OFICIAL: MORRO DOS CARRAPATOS


Recentemente, a mídia vem noticiando a situação da ocupação urbana Morro dos Carrapatos, na zona leste de Londrina, na tentativa de demonstrar a situação das dezenas de famílias que ali residem. Pensando em ser o mais fiel possível à realidade deles e em fazer que se conheça a luta que ali empreendem nós, da LAJUP, entramos em consenso a respeito da redação desta nota como uma síntese da situação do Morro.
Há mais de 10 anos, os primeiros desterrados chegaram ao Morro dos Carrapatos carregando com suas mão de trabalho o pouco que tinham. Recolhendo materiais recicláveis e trabalhando na construção de suas moradias, além do labor que lhes rendia o sustento, os barracos foram erguidos na base do suor e da necessidade. Aquilo que muitos têm como o básico, dado e incontestável em suas vidas era (e ainda é) o sonho das mais de 45 famílias do Morro dos Carrapatos.
O direito à moradia é constitucionalmente garantido e covardemente suprimido. O problema, que é tratado de maneira a culpabilizar os trabalhadores desabrigados, não é uma questão exclusiva do Morro dos Carrapatos. É a violação de um direito fundamental reconhecido e proclamado por legislações e tratados internacionais: é um ato de desgovernança e descaso para com o povo.
Em nosso país, a classe social não é uma escolha, principalmente para os mais carentes. O que se vê é uma condenação falsamente legitimada pelo discurso excludente e tendencioso da meritocracia. Ninguém está lá porque tem condições de viver confortavelmente em outro local, mas decidiu ocupar mesmo assim. As condições sub humanas a que são submetidos não comportam o fator “escolha”. Só comportam a real e latente necessidade e uma admirável luta e ânsia pela vida.
Desde que chegaram, os moradores exerceram a posse do terreno sem impedimentos. Exerceram todos os atos típicos desta: lá vivem, dela cuidam e nela e com ela trabalham. Ocupam, pois; não invadem. Por anos, não souberam a quem pertencia o terreno. Quase toda terra neste país já tem um titular. Mas foram anos e anos de moradia sem sinal nenhum de um suposto dono e, assim, lá seguiam suas vidas e seus trabalhos regados a empecilhos.
Para chegarem até suas casas, Passam pelo inclinado fundo de vale, por sua mata e por um riacho. Os dias são difíceis. O calor não encontra barreira nenhuma para adentrar as pequenas habitações. Não há luz, nem água, nem esgoto. Chuvas e ventos causam grandes estragos e os caminhos de terra batida que eles mesmo abriram para chegar até lá são perigosos.
Nós, do Lutas Assessoria Jurídica Popular (LAJUP), tomamos conhecimento da situação em 2014, quando, por intermédio do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), fomos contatados por uma moradora. Desde então, atuamos junto à comunidade em busca de soluções, direito e dignidade. Os desdobramentos foram vários: muitas reuniões com a comunidade, com a Companhia de Habitação (COHAB), com o CRAS e outros órgãos da assistência social. Há pouco tempo, chegou aos moradores uma ordem de despejo, que liminarmente, determina a desocupação do Morro no prazo de 45 dias.
A ação, ajuizada pela Construtora proprietária do terreno, alega que o terreno foi “invadido” e clama a posse e a propriedade do terreno. Alega que em breve começará um empreendimento, em parceria com a COHAB, o qual fornecerá mais de seiscentas moradias populares. Instigante é, no entanto, que esta posse nunca foi exercida. A despeito disso, a concessão do juiz comportou ainda a autorização do uso de força policial, desde já, caso famílias ainda estejam lá quando do fim do prazo.
Mais da metade das famílias que estão vivendo no Morro têm cadastro na COHAB, mas a princípio não seriam contempladas com as casas que serão onde construídas onde vivem. A COHAB tem um sistema próprio para a distribuição de moradias que é baseado no sorteio.
Sendo assim, o empreendimento popular que “atenderá às classes menos abastadas em prol de suas moradias" deixará na rua mais de 100 seres humanos. A ironia é assustadora. Quanto ao destino destas famílias? Nenhuma providência. Para onde vão? Até agora, a única opção além do Morro é a rua.
A exclusão dos privilegiados grita seu poder àqueles que tiveram sua voz arrancada e massacrada pela realidade. É uma luta que se impõe de maneira desigual e que é tão difícil quanto imprescindível. Nosso trabalho junto a comunidade tem sido, acima de tudo, no sentido de que sejam ouvidos. São eles os protagonistas desta luta, não nós.
Nossa tarefa tem como objetivo empoderá-los. É em momentos como estes, em que nossos conterrâneos têm a terra e a dignidade negada que devemos entrar em ação. O povo pode impedir esse despejo, e nós somos o povo. Não se pode deixar que injustiças, porque ocorridas na periferia, passem despercebidas. Estamos tratando de algo muito maior que uma disputa judicial. É uma busca constante em prol de todos nós, humanos, na lutas por direitos também humanos,e a que pouquíssimos têm acesso.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Ficha de Leitura

Por Fernanda Moraes

Dia 03/08/2015
Reunião de Formação Interna - Lutas Londrina (2015.2)
Texto: MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2002 (capítulo 6) 

A discussão girou entorno da distinção que o autor faz entre norma e poder. A norma é instrumento de expressão do poder, mas o poder não se limita à norma. Em alguns casos, as estruturas de poder são tão determinantes que se sobrepõem ao próprio Direito, como é o caso das atitudes de Eduardo Cunha no Congresso Nacional. Atitudes inconstitucionais como essa ganham espaço pois as estruturas de poder fundam-se não apenas na norma estatal, mas nos próprios preconceitos e ideologias reproduzidos pela sociedade (tais como racismo, machismo e homofobia) como forma de opressão de grupos específicos. A militância da AJUP, portanto, deve transcender as barreiras do direito e passar a discutir tais formas de opressão. Em intensa discussão, entendeu-se que não é possível pensar em um novo modelo social sem reconhecer os preconceitos e privilégios que carregamos. Um outro ponto levantado foi nossa formação tecnicista e pautada no “’está na lei”ou “a jurisprudência não tem decidido dessa maneira”. Presos aos textos normativos, deixamos muitas vezes, inclusive no Lutas, de lançar mão de argumentações jurídicas mais coerentes com a realidade, embora inovadoras.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Novos lutantes à vista!

Foi realizada no dia 16 de abril a primeira reunião de formação do Lutas Londrina, na sala 429 do CESA. Com acolhimento, foram expostas as propostas do Lutas para os ingressantes que também falaram de seus objetivos com o projeto. 52 pessoas de diferentes cursos estiveram presentes na sala, que, limitada com o número de cadeiras, fez com que uma grande roda se formasse no chão, deixando as pessoas mais próximas.
Com um violão e 52 vozes, a sala 429 do CESA encheu-se de música para a abertura da reunião. Uma paródia da música “ô, chuva”, do Falamansa, nomeada “OCUPE-SE”, feita pro Anyta e Vitor do nucleo de base ocupe-se, no xi eiv pr, foi timidamente cantada na primeira vez. Na segunda, com mais força. E na terceira, fez-se o show.
“Você que é gente do povo
O povo veio pra mudar
Conquistar seus direitos nas ruas
É preciso se movimentar
Experimente ocupar seus dias
Na luta e organização
Escrevendo a história do povo
Construindo a revolução
O Juventude
Eu peço pra acreditar
A luta é que muda esse mundo
Por meio do projeto popular
Jovenes
Les pido que creer
La lucha es la que cambia este mundo
Por medio del proyecto popular”
Começaram então as apresentações, e as perspectivas de cada um com o projeto foram expostas e anotadas no quadro negro. “Ouvir vozes silenciadas, humanizar o Direito, problematizar o aprendido na sala de aula, aprender com os outros, ajudar os que precisam”, foram alguns dos desejos expressados na noite de quinta-feira.
Os lutantes falaram um pouco das ocupações realizadas e das reuniões de formação, que devem ser assistidas pelos ingressantes com comprometimento para debates dos textos. O anseio de aprender uns com os outros, de ajudar, de crescer individualmente em suas convicções foi notório na reunião. Foram 52 pessoas que se mostraram disponíveis a sair da “mesmice” da universidade. 52 pessoas, e eu fui uma delas, uma ingressante. 52 pessoas que pretendem estender a mão para lutar juntos. 52 pessoas: porque o Lutas é feito de luta.
Isabela Fleischmann

quarta-feira, 29 de abril de 2015

[OPINIÃO] UM BASTA AO TRONO DE OURO: OS RESPONSÁVEIS SERÃO LEMBRADOS

Um texto sobre o momento dramático provocado pelo governo do Estado do Paraná, 
por Guilherme Uchimura​ e Renato Lima Barbosa​


Foto de 28/04/2015, Leandro Taques
A sociedade paranaense tem observado muito bem o grande conflito travado entre o governador Beto Richa e os servidores públicos estaduais. Essa é uma história que pode ser contada a partir das vésperas da eleição de 2014, quando o então governador declarava que o caixa estava “em ordem”, apesar de saber há muito tempo que tudo indicava uma crise financeira iminente. Com cinismo despudorado, a máscara logo caiu com a reeleição e a urgência de um ajuste fiscal para equilibrar as contas do estado no apagar das luzes de 2014. Empreendendo a política do “tratoraço” a partir do mês de dezembro, Richa aprovava uma série de medidas para aliviar as finanças de seu governo. Mas ainda insistia (e insiste) no que parece ser a menina dos olhos de seus ataques: o capital acumulado no Fundo de Previdência, o fundo de capitalização atualmente responsável pela aposentadoria dos servidores estaduais ingressos a partir de 2004.

A primeira tentativa de pegar esse dinheiro, como resultado de uma inesquecível resistência popular na ocupação da Assembleia Legislativa, foi arquivada junto com o PL 60/2015. Agora, a nova proposta do governador (PL 252/2015) é deslocar 33.556 aposentados do Fundo Financeiro para o Fundo de Previdência. Isso nada mais significa que transferir a responsabilidade de gastos do Tesouro Direto para a “poupança previdenciária” dos servidores estaduais mais recentes, deixando o caixa estadual mais livre para outros gastos.  Como contrapartida, há a previsão no mesmo projeto de que o Poder Executivo devolverá esse dinheiro com o tempo. O que faz logo a base de servidores se perguntar: em primeiro lugar, quem seria louco de confiar um empréstimo dessa importância a alguém reconhecidamente caloteiro? Em segundo lugar, qual é a legitimidade do governador para dizer que o direito fundamental à aposentadoria (CF, art. 6º) é menos importante do que os misteriosos projetos do seu governo?

Foi diante desse cenário que, novamente, diversas categorias de servidores públicos estaduais, inclusive os professores da UEL, se mobilizaram para enfrentar esse novo ataque do governador. Apesar de noticiar que o projeto foi extensamente debatido, a verdade é que o governo se negou a verdadeiramente promover a negociação coletiva, pelo menos com o SINDIPROL/ADUEL, violando frontalmente a Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho.

Já os episódios que aconteceram durante essa semana, aos arredores da Assembleia Legislativa, foram tão lamentáveis a ponto de, talvez, constituírem a chave para melhor compreender toda essa história. Para começar, uma imagem que remete tão-somente aos regimes ditatoriais: com a força máxima da Polícia Militar, aquela que um dia se dizia a “casa do povo” foi cercada por um pelotão armado. Centenas e centenas de policias fardados: a violência fotografada em uma imagem que, definitivamente, nunca se cicatrizará na história deste estado.

Charge de Paixão para a Gazeta do Povo

28/04/2015



Foto de 28/04/2015, Leandro Taque

Do lado de lá dessa inusitada fronteira humana, os deputados estaduais aprovavam em primeira votação o PL 252, apressadamente o encaminhando à segunda votação, seguindo um acelerado regime de urgência. Do outro lado do cerco, as redes sociais denunciavam ao longo de uma terça-feira melancólica a violência sofrida pelos que estavam lá, protestando do lado de fora da Assembleia: jatos de água, spray de pimenta, gás lacrimogênio e bombas de efeito moral lançadas aos trabalhadores grevistas. Soldados, com armas e escudos empunhados contra professores de “alta periculosidade”, promoviam a trilha sonora deste filme de guerra, enquanto os parlamentares discutiam do lado de dentro a liberação do dinheiro capitalizado no Fundo de Previdência.


O conflito ainda não terminou. A votação final do PL 252 ainda será realizada, possivelmente ainda hoje, quarta-feira. Mas algumas coisas, tateando a obscuridade do fenômeno político através da materialidade da greve, já pudemos melhor compreender. Fica muito clara a fragilidade da democracia e da própria divisão dos poderes diante das possibilidades oferecidas pelo jogo eleitoral. Com algum trunfo que ainda nos é difícil afirmar, o Poder Judiciário tende a servir de degrau para as vontades do nosso déspota. Com a promiscuidade da troca de votos por verbas e favores, os parlamentares empurram o governador para o vértice mais alto de uma triangulação política desigual. O absolutismo se estabiliza nesse palco como a falsa democracia eleitoral, na qual só resta aos eleitores a exclusão, o lado de fora do cerco. A crise de representatividade e a necessidade de uma reforma política popular fica cada vez mais clara.


Foto de 28/04/2015, Joka Madruga
Mas, apostando nessa suposta estabilidade institucional, o governador pode estar certo que o confronto por ele iniciado não lhe renderá o trono de ouro nem um reinado calmo sobre nosso estado. Ainda que aprovado esse projeto, é inegável que está eivado de inúmeras fragilidades legais e constitucionais, entre as quais o fato de não respeitar as diretrizes do Ministério da Previdência Social. Mas muito além da dimensão (anti)jurídica do embate, a comunidade paranaense nunca se esquecerá da violência, da irresponsabilidade e inconsequência, do imediatismo, do cinismo de um menino mimado, da sua aspiração ao despotismo, dos atropelos, da falta de transparência e do desrespeito frontal aos trabalhadores desse estado. Os deputados que, com seus votos favoráveis ao PL 252, se juntarem a essa forma arbitrária de governar também não serão esquecidos. Terão sofrido um desgaste do tamanho de seu descompromisso com o povo ao aprovarem, depois de um suado cálculo do “coeficiente eleitoral”, este projeto de lei que não interessa a ninguém senão ao mandatário atual do Poder Executivo. A partir daí, das duas uma: será uma lei fadada à ineficácia por ser incompatível com o ordenamento constitucional, ou será o início de um desastre financeiro para os servidores estaduais e para os futuros governadores do Paraná. Em qualquer caso, os responsáveis serão lembrados.


Renato Lima Barbosa
Professor

Guilherme Cavicchioli Uchimura 
Advogado, pesquisador, colabordador externo do Lutas Londrina

Curitiba, 29 de abril de 2015.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Repostando a estréia dos integrantes do LUTAS, os colaboradores externos Rodolfo e Guilherme, como colunistas mensais do blogue da Assessoria Jurídica PopularEm "Direito, delírio, experiências e coisas reais", os autores buscam olhar o direito de forma diferente, tentando conhecê-lo a partir de sua carnavalização. A seguir, copiamos o texto originariamente publicado semana passada, dia 15/04/2015, aqui

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Este pequeno texto não é o nosso primeiro neste blogue. Em nossa primeira e recente experiência, tentamos expressar um pouco das angústias e conhecimentos que brotam da práxis extensionista de uma AJUP universitária.

Aqui, marca-se o início de uma nova caminhada. Agora advogados, neste início de ano passamos de graduandos à condição de colaboradores externos do LUTAS (UEL) a AJUP que há três anos ajudamos a construir em Londrina/PR. Assim nos tornamos dois jovens recém-graduados que não conseguem, porém, enxergar-se de modo algum como formados em direito. Como fazê-lo, afinal, se a cada experiência, a cada dia, a cada delírio, sempre crescem mais e mais as perguntas diante desse estranho objeto que é o fenômeno jurídico?

Foi nesse momento de transição pessoal que, com muito prazer, aceitamos o convite de escrever uma coluna e, assim, contribuir com este espaço de crítica e formação.

Nossas intervenções aqui serão mensais. E, assim como em nosso primeiro texto, nosso objetivo será o de problematizar questões vivas, cotidianas, provocar debates e reflexões e, com isso, desafiar o direito a ser desmistificado a partir do real. Daí o nome da coluna: Direito, delírio, experiências e coisas reais.

Começaremos falando sobre o que representou e representa participar de uma AJUP a esses dois caminhantes de primeiras viagens. Parece a nós que a grande vantagem da extensão universitária em relação ao ensino superior “tradicional” sempre foi o pisar no desconhecido. Longe das salas de aula e dos livros, o concreto das relações sociais desafia muito mais o estudante em sua dinâmica cognitiva. Nesse sentido, é possível perceber que a experiência ajupiana cinde-se inevitavelmente em dois momentos, complementares, mas distintos entre si: 1) trabalhar com o direito e com as demandas das comunidades assessoradas em conjunto com elas; e 2) pesquisar o direito como objeto do conhecimento humano, especialmente a partir dessas mesmas experiências práticas.

Bakhtine, acima, autor do conceito de
carnavalização como critério de
interpretação literária.
No primeiro desses momentos, no qual se desenrolam as atividades de assessoria jurídica propriamente ditas, as experiências são geralmente intensas, urgentes, impactantes, angustiantes, nos fazem chorar e nos desesperam. Ao final, voltamos para casa com a sensação de que seria necessário fazer mais, muito mais. Mas, sobretudo, é inegável que voltamos para casa diferentes. As marcas de nossos sapatos na extensão, que foram por um momento vivas, agora já vão se vertendo em pequenas memórias. E essas, ao se decantarem em nossa consciência, finalmente reviram toda a constelação teórica sobre o direito que carregávamos dentre os muros da graduação. Em poucas palavras: apreender o direito pelos olhos de uma AJUP inevitavelmente significa carnavalizá-lo, escancarar as suas mais íntimas contradições e, ao final, enfrentá-lo como algo palpitantemente estranho. E assim chegamos ao segundo e desafiante momento de uma AJUP universitária: pesquisar o direito, esse direito ao avesso e desafiante, esse direito carnavalizado e crú que acaba de ser apreendido na prática extensionista.  

A carnavalização não poderia
tornar possível
a criação da estrutura aberta,
da grande polifonia,
contra os costumes gnosiológicos
que deixam os juristas
com sua consciência em paz?
Luis Alberto Warat 1

Capa do álbum Alucinação (1976), de Belchior
Lançados nessa aventura de brilho e escuro, sombra e luz, ao integrarmos uma AJUP vivemos essa intensa alucinação, semelhante a de um jovem Belchior que, logo no início de seu álbum de 1976, afirmava a condição histórica de ser um apenas rapaz, latino americano, sem dinheiro no banco, e vindo do interior, já denunciando, ao mesmo tempo, a incômoda contradição imposta pelo antigo compositor baiano que dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso...

Também percorremos nossa própria alucinação na graduação, conhecendo por meio de simplificações de sala de aula aquilo que viria a ser o direito. Até que podemos, em dado momento da graduação, dar dois grandes gritos, ainda que prematuros. O primeiro deles veio da desilusão: nada é divino, nada, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada, nada é misterioso, não.

Já o nosso outro grito, esse que ainda amadurece em nós, vem da puberdade de nossa alucinação, como o cantor ao chegar à faixa central de seu disco: o grito de já não estar mais interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. O que nos interessa, agora, são justamente todas as coisas concretas, narradas nos versos seguintes da música, versos carregados de cotidianidade (jeans, motocicleta, violência, tráfego, pessoas cinzas normais) que chegam a passar despercebidas até a chegada do refrão novamente.


Curiosamente, após o ápice do álbum representado nessa música que lhe dá o nome, o poeta-advogado destina as quatro canções finais, já em musicalidade mais densa e de prosa entristecida, para falar do passado, presente e futuro. Alerta para o delirante não cantar vitória muito cedo não (Não Leve Flores); anuncia as mudanças em um passado que não nos serve mais (Velha Roupa Colorida); retrata sua pesada caminhada, de sonho, de sangue e de América do Sul (À Palo Seco); e tem a certeza que aflora da pele do retirante de que nada é divino nem maravilhoso para aquele que vem do Norte (Fotografia 3x4).



Como o compositor cearense, que deixa o futuro para a última canção do álbum, Antes do Fim, nós o fazemos igual.

Regredindo ao estranhamento do direito após a carnavalização da ordem jurídica pelos delírios do real, nos perguntamos: será que aí, nesse caos instaurado, poderá abrir-se a possibilidade de transformar o velho, aquelas falsas percepções sobre o direito, em algo novo e verdadeiro?

Talvez.

Talvez seja esse o misterioso local onde, pelo esforço do delírio, poderemos conhecer teoricamente o direito. Essa será nossa aposta: arriscaremos aprender a delirar com as coisas reais, arriscaremos nos entregar a esses delírios como negação do retorno ao velho antigo. Apostaremos em, assim, nos reaproximarmos do direito, depois de carnavalizá-lo, como objeto pensado, agora enfim a partir das experiências concretas.

Pelo olhar dos olhos do povo, dissipadas as nébulas de suas mistificações, o nosso compromisso será com aqueles que sofrem nas mãos da ordem posta, com os pretos, pobres, mulheres, discriminados, estudantes, humilhados do parque e todos os trabalhadores… Essa será a nossa aposta epistemológica. Essa será a subida ao mirante2 mais elevado para observarmos as determinações concretas que permeiam a nossa sociabilidade e o direito dentro dela. Eis o método pelo qual o delírio nos regredirá ao concreto. Eis o método pelo qual esperamos, enfim, encontrar o direito nas coisas reais...

E a única forma que pode ser norma
é nenhuma regra ter;
é nunca fazer nada que o mestre mandar.
Sempre desobedecer.
Nunca reverenciar.”
Belchior, Como o diabo gosta

Reservamos a esses últimos parágrafos uma nota indesejada, cujo motivo ainda nos é difícil aceitar. Não poderíamos terminar o texto sem reservarmos suas linhas finais a um rapaz, latino americano, pai, que no dia 13 de abril de 2015 deixara órfãos seus versos e poesias. Eduardo Galeano, poeta que também sonhava a partir de coisas reais, que era capaz de mirar lo que no se mira, pero lo que merece ser mirado, coincidentemente nomeara uma de suas poesias pelo nome de El derecho al delírio, declamada no vídeo logo abaixo.

Por ocasião de sua partida, assumimos então mais um compromisso com o advento desta coluna, um compromisso galeano: qualquer que seja a nossa busca, o de sempre poetizar a vida e a escrita com simplicidade, sem perder de vista os sonhos, nem o contato com o real.

¿Que tal si deliramos por un ratito?
¿Que tal si clavamos los ojos, más alla de la infamia
para adivinar otro mundo posible? 3



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(1) WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abando do sentido e da reconstrução da subjetividade. Vol. I.   Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

(2) Ver LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

(3) GALEANO, Eduardo. Patas arriba. Madrid: Centro Bibliográfico y Cultural: 1998.

terça-feira, 10 de março de 2015

Mas a terra dada não se abre a boca? *

Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Fala do Mestre Carpina, em
João Cabral de Mello Neto,
Morte e Vida Severina.


A grandeza de João Cabral de Mello Neto talvez esteja em traduzir a angústia popular na mais rude e bela poesia nacional conhecida. Verte-se a vida em versos, em uma narrativa seca, que vai do sofrimento agreste aos dilemas existenciais humanos. Nesse sentido, uma das partes de sua obra mais célebres conta o enterro de um trabalhador de eito, no qual se ouve o que dele dizem os amigos presentes no cemitério. Essa história, que integra a obra Morte e Vida Severina, foi musicada por Chico Buarque em 1966, ganhando mais notoriedade ainda sob o título Funeral de um Lavrador".



A terra

Esse é um tema com o qual aprendemos a lidar nas atividades extensionistas de nossa Assessoria Jurídica Popular. A começar pelos primeiros contatos com a questão agrária brasileira, logo se apreende uma conjuntura formada pela perpetuação dos privilégios da elite latifundiária às custas da sobre-exploração dos trabalhadores rurais. Uma de nossas primeiras lições foi aprender a caminhar junto com os movimentos agrários pela melhor distribuição da terra.


Edvard Munch, Entardecer

Mas eis que voltamos ao meio urbano. Aqui aprendemos nova lição: a história da terra, contada em Morte e Vida Severina, também se realiza nas cidades. Caminhamos pelas “invasões” urbanas. Logo passamos a chamá-las, junto com os moradores, de ocupações. E, assim como no meio rural, ao pisar nelas pisamos sobre um paradoxo. Da mesma terra que nos abriga e alimenta, nasce a mais dolorosa angústia humana: não existe lugar para todos, nem no campo, nem na cidade.

Ocupação I
Essa é uma ilusão que muitos se resignam a aceitar. Outros, porém, se obstinam em lutar pela verdade, pelo fim dos privilégios de alguns, pelo fim dessa covardia ou, simplesmente, por um lugar para viver. Lutam por algo que poderia se chamar direito à moradia (aquele mesmo, escondido no art. 6º da Constituição Federal, teimando em ineficácia?). Entre as opções por lutar ou não lutar, encrosta-se o sentimento de angústia em todos que conhecem esse desespero. Mesmo nós, estudantes extensionistas, perdemos noites rolando em nossas camas inconformados com a falta de moradia digna para todos. A realidade, entretanto, é muito mais dura do que nossa inquietude bem abrigada. A realidade é formada por casebres precários, construídos à base de lona e madeirite, por inundações, doenças, violência, mortes..



Veredas I
A realidade

A realidade. Na condição de estudantes de direito, não nos privamos de querer conhecê-la em seu mais doloroso íntimo real. E não é outra coisa que a participação do LUTAS vem nos proporcionando. O relato pessoal que trazemos neste texto, e que norteia toda a reflexão proposta, foi marcante nesse sentido. Decorre de uma das atividades extensionistas ocorridas em fevereiro deste ano.

Acompanhamos há cerca de sete meses uma ocupação urbana específica na cidade de Londrina/PR, colocada em risco pela existência de um processo judicial envolvendo a posse do imóvel ocupado. Trata-se de um grupo de cerca de trinta famílias residentes em terreno particular de dois mil metros quadrados; famílias essas que, apesar das singulares histórias de vida que possuem, são solidárias da mesma desventura: “ocupar, ocupar, ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que será meu”.

As aspas retomam a lembrança dessa frase, agora escrita, outrora, palavra dita.

Era uma pequena sala.  Estávamos nos momentos finais de uma oficina proposta pelo LUTAS aos moradores da ocupação, encontro cujo intuito era discutir os critérios de seleção para ingresso em projetos municipais de habitação popular. A reunião pautava-se, no fundo, pela possibilidade iminente de desocupação do terreno, o que desde logo nos colocava na condição de Mestre Carpina frente à angústia severina, pois também não sabíamos bem a resposta para a pergunta que se fazia.


Encerrando o círculo de conversa, sem saber bem onde havíamos chegado, os ocupantes presentes, já descontraídos, falavam com indecifráveis sorrisos sobre suas histórias particulares de luta por moradia. Nesse derradeiro diálogo, cada um deles nos contava onde poderia se abrigar caso houvesse futura ordem judicial de reintegração de posse. Eis que, finda uma longa narrativa emocionada, uma moradora respira fundo e, pausadamente, anuncia ela própria a sua cova medida: “Ocupar, ocupar, ocupar, até finalmente ocupar um pedaço de terra debaixo do chão, que será meu”. Como que se todos nos olhássemos através de um cômodo sem circunferência, cujo centro, porém, ocupasse todos os lugares, sentimos o calor de um longo momento de silêncio,  sinestésicos e herméticos em nós mesmos, lacrados nessa sombria Esfera de Pascal.

Ocupação II
O funeral do trabalhador de eito, obra de João Cabral de Mello Neto, era então aquela própria sala. O defunto, que vivo queria ver a terra dividida, renascia para nos contar seu próprio fim. Levantado de uma cova grande para sua carne pouca, ora vivo, ainda severino, diria por fim antes de retornar ao seu pedaço de chão: “Mas a terra dada não se abre a boca”.







A ingenuidade

Ocupação III
Há um grande abismo entre as diferentes realidades que se chocam a partir das vivências proporcionadas pela assessoria jurídica popular especialmente no âmbito daquelas que, tal qual o LUTAS, se vinculam a instituições universitárias. Na condição de estudantes, saímos às ruas pelas primeiras experiências extensionistas, inevitavelmente despreparados, com um involuntário e verdadeiro frio na barriga. Tiramos os pés dos corredores da faculdade e das classes e, quando pisamos na terra batida, temos já a suposta certeza de que alguém nos fará perguntas sobre alguma lei, sobre um possível processo judicial ou, ainda, sobre a legalidade de algum ato que sofreram de uma autoridade que acreditam ser, da mesma maneira, autoritário.

Eis que somos fulminados: E aí, “doutor/doutora”, o que podemos fazer?

A educação popular inerente à assessoria jurídica nos orienta, enquanto método, a identificar as falas significativas logo nos primeiros contatos com a comunidade. Tarefa ingrata! Como identificar, a partir de pequenas falas, toda a história de vida que cada pessoa carrega? E, além disso, a partir delas orientar nossa atuação? Ingênuos aqueles que, entre teoria e prática, pensaram que seria tão simples!

Aquele mesmo despreparo, que carregamos para fora da universidade conosco, nos leva a crer que as respostas para as perguntas da comunidade estariam nos manuais e cursos esquematizados que acostumamos a ler. Ingênuos, nós. Eis que o encontro com o outro nos revela que as perguntas possuem um tanto da mesma angústia severina, sem resposta, pois igualmente não há pergunta exata, senão que um grito insurgente e, sobretudo, verdadeiro.

Reunião com os ocupantes

  
A angústia

A experiência sumariamente narrada neste texto representou a nós, pessoalmente, não apenas momento de intensa emoção, mas também imensurável amadurecimento prático. Como um giro de percepção, a nossa situação no mundo passa a ser de um repetitivo e inesgotável Funeral do Lavrador: vivemos permeados pelas histórias de quem não tem um pedaço de terra para morar, senão defuntos parcos a ocupá-la a palmos medida. A angústia, como sentimento vivido, punge.

Diante da luta pela moradia sob a sociabilidade capitalista, essa angústia individual, reflexo da própria consciência de existir e de morrer, torna-se uma angústia compartilhada, igualmente pungente, mas então de forma coletiva.

Diria Sartre: “é na angústia que o homem toma consciência da liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesma em questão” (O Ser e o Nada). Se, portanto, é do sentimento de angústia que podemos conhecer a nossa própria liberdade, eis que esse seria um passo dado em direção à conscientização coletiva da necessidade de lutar.


Veredas II
Apenas a começar pela luta por moradia que de maneira alguma se circunscreve à busca pela terra dada. Negando essa cova rasa, à qual não se abre a boca, novamente nos aparece a pergunta severina: como defender a vida? Feitos então Mestre Carpina, não sabendo as respostas às perguntas vividas, deixamos a ela novamente a resposta, à própria vida, “vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica”.

Das primeiras pisadas em solo ocupado, da negação da vida à sua resposta viva, esse movimento reflexivo inevitavelmente acaba por ser vivenciado em uma assessoria jurídica popular engajada. A ingenuidade, que também faz parte do processo, amadurece-se em perguntas severinas. E essas, da realidade à angústia, realimentam-se em forma de lutas e gritos insurgentes, reivindicando a cada instante a sua mesma afirmação vivida, pois não há, de fato, melhor resposta que o espetáculo da vida.

De choque em choque, pisando na terra pela qual se luta, aos poucos compreendemos melhor do que se trata essa angústia coletiva. E vamos procurando transformá-la em querer-mais, em sonhos e em lutas sociais. Seja esse um desafio invencível, fazemos e faremos parte dessa luta, hoje como estudantes, amanhã de alguma forma que seja.



Por Guilherme Cavicchioli Uchimura e Rodolfo Carvalho Neves dos Santos
Assessores jurídicos da AJUP LUTAS Londrina.


* Publicado no Blog Assessoria Jurídica Popular, "um blogue coletivo dedicado ao tema da assessoria jurídica popular. As autoras e autores são estudantes, professorxs, advogadxs e militantes de movimentos sociais que desenvolvem atividades de assessoria jurídica e educação popular no Brasil." Leitura crítica altamente recomendada.